O Milhafre
Quando abro os olhos, o céu é a primeira coisa que vejo, e o vento a primeira coisa que sinto. O céu azul afaga-me com os seus dedos de vento e o sol quente seca as minhas penas molhadas.
Do ovo que está junto da minha casca partida vem um barulho e um bico curvo emerge em busca de ar. Ouço mais um ruído e consigo ver uma cabecinha húmida e pegajosa. São dois passarinhos que lutam para se desembaraçarem da casca. São os meus irmãos.
De repente, ouve-se um batido de asas. É a nossa mãe que regressa ao ninho com comida no bico. Cheira tão bem que piamos logo “Ki! Ki!”. Temos todos fome, mas como sou a cria mais velha, sou alimentada primeiro.
Os nossos pais trazem-nos ratos e musaranhos mal os apanham, e cortam-nos em pedacinhos para podermos comê-los. Todos crescemos depressa, mas sou eu quem cresce mais.
O nosso ninho está numa pontinha do céu. Os dedos suaves do vento agitam as nossas penas e o sol aquece os nossos dorsos. Sentamo-nos bem juntinhos dentro de um buraco em forma de folha de trevo, colocado bem alto na parede de uma escola. Dali conseguimos ver o recreio, os campos da aldeia e a estrada.
Esticamos as asas e abanamo-las como fazem os nossos pais. As crianças que estão no recreio olham para cima e apontam:
— Olhem os milhafres bebés! Vejam só as suas peninhas fofas!
Certa noite, depois de as aulas acabarem, ouvimos um som de passos que se dirigem para nós. Arrastamo-nos até ao fundo do ninho. Vemos uma sombra negra a pairar e piamos “Ki! Ki!”. Não é o nosso pai nem a nossa mãe. É uma criatura sem cheiro a pássaro. Dou-lhe algumas bicadas e arranho-a com as minhas garras. A silhueta faz um barulho estranho e sou agarrado por duas mãos. Levam-me de casa, envolto na escuridão
Quando abrem o saco, a luz ofusca-me. Tento voar, mas vou de encontro a umas grades fortes e caio no chão, numa nuvem de penas. Onde está a minha casa, onde estão os meus pais e irmãos? Onde estão o vento e o sol? De novo me atiro contra as grades e de novo caio no chão. Uma voz diz, então:
— Quero que sejas meu amigo e de mais ninguém.
Mas eu não compreendo. Lembro-me de ver este rapaz no recreio. É maior do que os outros e empurra-os com frequência. Nunca se ri ou brinca com os colegas.
Quando me traz comida não a parte em bocados e, por isso, não posso comê-la. Tenta que eu salte para a sua mão enluvada, mas fico aninhado a um canto da gaiola. Começo a ficar mais magro e mais fraco, e tenho saudades de casa. Chamo pelos meus pais “Ki! Ki!”.
O rapaz cobre-me a cabeça e sinto os dedos do vento nas minhas penas. Quando me tira a cobertura, bato as asas e tento voar. Ouço, então, uma rapariga exclamar:
— Daniel! Roubaste o nosso milhafre!
— Deixa-me em paz! — grita o rapaz.
A rapariga é corajosa e não desiste:
— O que lhe aconteceu? Está tão magrinho!
O rapaz insiste:
— Quero ficar com ele. Quero ter algo que seja meu!
A rapariga replica:
— Um animal selvagem não pode ser teu amigo. Ou o levas de volta ou ele morre.
— Não quero que ele morra — diz o rapaz, num tom de voz suave e meigo.
— Se o levares de volta, prometo que não conto a ninguém ─ insiste a menina.
Consigo ouvir o barulho do recreio. Estou perto de casa. As crianças rodeiam-nos e gritam:
— É o nosso milhafre! O Daniel encontrou o nosso milhafre!
Estou em casa. Os meus irmãos sibilam. Estão mais crescidos do que eu e não parecem conhecer-me. Mas assim que pio “Ki! Ki!”, lembram-se do som que eu fazia e deixam-me entrar no ninho. Vão até à borda, batem as asas e voam por cima do recreio.
O céu afaga-me com os seus dedos de vento e agita as minhas penas. Estou sozinho em casa.
Ouço um bater poderoso de asas: é a minha mãe que vem alimentar-me. Lembra-se da sua primeira cria. Agora sei que estou a salvo.
Em breve as minhas asas ficam outra vez suaves e fortes. Mas continuo na borda do ninho. Não quero deixar a minha casa. As crianças que estão no recreio olham para cima e dizem umas às outras:
— O milhafre tem medo de voar.
O meu pai está no topo de um mastro do recreio. Tem um musaranho no bico para mim. Tenho fome e chamo por ele:
— Ki! Ki!
Mas o meu pai nem se mexe.
O meu irmão aterra numa árvore e pede comida. Bato as asas, numa tentativa desesperada. Tenho de voar!
De repente, sinto a espessura do ar e sinto os dedos do vento a segurarem-me. Atiro-me da borda e voo em direcção ao mastro. Arranco o musaranho do bico do meu pai e oiço as crianças a rir e a aplaudir.
O céu e o vento são meus amigos. Abano as asas para poder voar bem alto sobre a escola. Os meus olhos penetrantes procuram ratos, enquanto pairo sobre os dedos do vento.
Vejo o rapaz com o seu novo amigo. Olham para cima e exclamam, excitados:
— Olha o milhafre! O nosso milhafre!
Alan Brown; Christian Birmingham
Windhover
London, Picture Lions, 1998
tradução e adaptação